Depois de dois anos de crise, o setor festeja a sua quase total recuperação. Em 2018, voaram 103 milhões de brasileiros, 93 milhões deles dentro do país. Os aviões estão lotados, chegam as empresas estrangeiras de baixo custo e há alterações nos programas de milhagens! Entenda esses novos tempos!
Mudanças ajato!
por Fabio Steinberg
Falem mal, mas falem de mim. A expressão popular cabe como uma luva para explicar a relação amor-ódio que impera entre a aviação e o consumidor. Quanto mais as companhias aéreas maltratam os passageiros, principalmente os da classe econômica, mais parece que eles optam por esse tipo de transporte para suas viagens.
O fenômeno não é brasileiro, mas mundial. A caixinha de “maldades” das empresas, sob a bandeira de lucratividade, parece não ter fim. Espaço mais reduzido entre fileiras das poltronas menos confortáveis. Mais gente a bordo, menos banheiros. Cobrança de bagagem despachada. Tormentosas operações de embarque e desembarque. Taxa de tudo o que é possível, inclusive para escolher assento com antecedência. Voos com refeições escassas, ruins, pagas ou até inexistentes. É a imaginação sem fim. No entanto, nunca se voou tanto.
No mundo já chegam a 4,3 bilhões de passageiros por ano. A aviação, que já foi coisa de elite no passado, ascendeu, enfim, à categoria de transporte de massa. Tornou-se vetor de desenvolvimento. Simples assim: onde há aviação, chega junto o progresso. No Brasil, depois de dois anos de sufoco causados pela crise econômica de 2015 e 2016, o setor comemora a quase total recuperação.
Cerca de 103 milhões de passageiros foram transportados em 2018 pelas quatro maiores empresas brasileiras (99% do total) – somados aí os mercados doméstico e internacional. Destes, 93 milhões voaram dentro do país. Trata-se de um vigoroso crescimento de 3,57% em relação ao ano anterior. Ou seja, embarcou uma multidão de 3,2 milhões de pessoas a mais que 2017. Hoje, o Brasil é o terceiro maior mercado aéreo doméstico do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
De acordo com a ABEAR (Associação Brasileira de Empresas Aéreas), o índice de aproveitamento foi de excelentes 81.41%. Trocando em miúdos, as aeronaves percorreram o espaço nacional quase lotadas. Ninguém perguntou, mas não custa responder: não é para menos que com números como esses, bem diferentes dos 70% de ocupação do passado, cada vez mais as companhias aéreas dependam menos dos programas de milhagens. Isso ajuda a explicar porque agora é necessário resgatar com muito mais pontos os mesmos percursos de poucos anos atrás.
“Com a regulamentação do setor em 2008 a aviação brasileira entrou na era da modernidade. Dez anos depois, as passagens custam a metade”, comenta o consultor Adalberto Febeliano. “A rápida recuperação do número de passageiros para os índices anteriores a 2015 demonstra que transporte aéreo virou commodity. Tornou-se uma necessidade básica do brasileiro”, completa o especialista.
No mundo todo a aviação comercial vive um bom momento. Começa pelos Estados Unidos, que concentram o maior movimento de aeronaves do planeta. “Após fase difícil, as fusões e consolidações que ocorreram na indústria norte-americana tornaram o setor saudável”, explica Febeliano. Lá, o setor passou a dar lucro nos últimos seis a sete anos. Esse mesmo modelo se propagou na Europa e outros países. Para isso todas adotaram medidas antipáticas equivalentes, como apertar os assentos, cortar a comida ou cobrar serviços ou itens antes incluídos na passagem. Este último, conhecido como unbundling, pode não agradar aos passageiros, mas serviu para estancar as finanças combalidas da aviação.
Os governos cada vez mais reconhecem a importância da aviação para o desenvolvimento. No Brasil, recentes exemplos são investimentos que trouxeram melhoria significativa da infraestrutura e programas de privatização de aeroportos. Nesse mesmo patamar, veio a liberação de aquisição de até 100% do capital estrangeiro em companhias aéreas brasileiras. Especialistas apostam nessa medida para aumentar a competitividade e reduzir o preço médio das tarifas, assim como maior lucratividade das empresas.
A evolução da aviação recente ocorre em todas as frentes. Destacam-se duas principais. A primeira é mercadológica. Visa diversificar o atendimento dos passageiros levando em conta seus diferentes padrões econômicos e necessidades de serviços. A segunda é tecnológica. Combina ciência com saúde e bem-estar para aumentar o conforto do viajante durante voos, principalmente os de longo alcance.
Cerca de 25 mil aeronaves comerciais circulam pelo planeta, das quais em torno de 600 no Brasil. O modelo mais popular é o Boeing 737, com mais 9,6 mil unidades construídas desde 1967. É seguido de perto pelo Airbus A320, com 7 mil aeronaves montadas desde 1988. “Consolidou-se o uso de aviões em torno de 180 lugares como espinha dorsal da aviação mundial em detrimento dos grandes aviões (wide body), conclui Adalberto Febeliano.
Menos regalias
Esse processo não se limitou ao tipo e tamanho das aeronaves. Uma pessoa que deixasse de voar nos últimos 15 anos teria dificuldade para entender os novos mecanismos operacionais e comerciais. A começar pelas inúmeras modalidades e valores das passagens. E que podem agora se alterar – e muito – por uma miríade de fatores, entre eles data da compra, taxa de ocupação, grau de conforto ou itens incluídos no valor total. Antes a qualidade do atendimento e serviços podiam variar pelo nível de sofisticação, mas na essência tudo era meio parecido em qualquer das três classes existentes: primeira, business e econômica.
Era um processo injusto. Com o ticket custando até o dobro do que é hoje, dava direito a tudo, fosse ou não consumido pelo passageiro. Refeições caprichadas, generosas franquias de bagagem, poltronas confortáveis e espaçosas, serviço de bordo em geral impecável. Na prática, o mercado se encarregou de mudar as coisas, pois preferiu pagar mais barato por menos regalias. Hoje, a primeira classe até sumiu na maioria dos voos. O seu espaço foi ocupado pela classe business. A econômica se rachou em duas categorias: básica, tipo sardinha em lata, e a premium, com maior conforto (nos voos domésticos brasileiros há outros formatos, mas com conceito similar).
Além disso, há as low costs. O seu surgimento, com destaque para a Ryanair e a Easyjet, provocou uma revolução na aviação comercial. Da noite para o dia as companhias tiveram que se ajustar à nova realidade de cortar supérfluos – ou cobrar por eles. Era urgente fazer frente à competição feroz das empresas de baixo custo, ou sair do mercado. Dentro do Brasil, embora este até fosse o projeto inicial da GOL, as low costs ainda estão ausentes.
Cias de baixo custo
Já na disputa pelas viagens internacionais, a coisa é diferente. A cada dia novas empresas de baixo custo anunciam sua chegada ao Brasil. Como a Sky Airline, na rota entre o Chile e Rio de Janeiro, e Florianópolis e São Paulo com tarifas 30% mais baixas. Ou a argentina Flybondi, prestes a ligar Buenos Aires e Córdoba a Florianópolis e Rio de Janeiro. Ou ainda a Norwegian, com voos programados entre Londres e Rio e São Paulo. Mas não basta uma companhia aérea querer ser low cost. Muitas tentaram e se deram mal. Como a Joon, da Air France, que recentemente fechou as portas após um ano de operação. Talvez, seja por isso que as empresas brasileiras e demais interessados pensem duas vezes antes de entrar nesse segmento. Mas é só uma questão de tempo. “Os aeroportos brasileiros, que cada vez mais envolvem investimentos privados, vão querer desenvolver este mercado tão promissor”, prevê o consultor Febeliano.
Relaxa e aproveite o voo
Para melhorar a experiência dos passageiros a bordo, as companhias aéreas buscam ajuda da ciência e da tecnologia. Pudera: com a autonomia crescente dos jatos, há voos diretos que chegam a se estender por 18 horas, como o de Cingapura a Nova York. Como aguentar tanto tempo dentro de um avião, principalmente nas classes econômicas espremidas?
Os investimentos no bem-estar a bordo ocorrem em três frentes principais: culinária, descanso e exercícios direcionados. A comida deve levar em conta menos movimentos do corpo, hidratação e nutrição, com forte a apelo a sabores e texturas. Quem está à frente neste quesito são a Singapore Airlines, Alaska Airlines e Delta.
A tecnologia também dá importante contribuição à experiência de voar com uso inteligente das luzes da cabine nas diferentes fases do voo, o controle de ruídos e o tratamento do ar. Companhias, como a Lufthansa, usam diversos padrões de iluminação no percurso que permitem ajustar o bioritmo dos passageiros, seja dia ou noite. Soluções integradas de bem-estar, como as da Panasonic Avionics, adotam algoritmos especializados em sono para melhorar o descanso e permitir um despertar suave. Da mesma forma, luzes internas são programadas para ressaltar as cores da comida durante as refeições, assim como reduzir o desgaste dos olhos na leitura.
O controle de ruído de fundo da cabine permite um sono reconfortante sem necessidade de headphones. A desodorização do ar também evoluiu. A aplicação de micropartículas em baixa voltagem neutraliza o entorno e livra o passageiro de vírus, bactérias, mofo e até de alergênicos de animais domésticos. Para completar, vídeos com técnicas de meditação incluídas no entretenimento a bordo estão se tornando cada dia mais populares. Com essas inovações, a tradicional frase “relaxe e aproveite o voo”, ouvida nos anúncios das companhias, ganha nova dimensão. Deixa de ser uma boa intenção para se transformar em realidade.
Como ficam os programas de milhagem?
Seguindo tendência da aviação comercial, recentemente a Gol anunciou que vai fechar o capital da Smiles. Pretende manter o bem-sucedido programa de recompensas apenas sob suas asas.
A Gol não está sozinha. Segue o exemplo de outras aéreas, como Air Canadá, Aeroméxico e LATAM. Sem falar das concorrentes nacionais Azul e Avianca, que já nasceram sob total controle das empresas-mãe.
Houve uma época em que os programas de milhagens eram mal necessário para as companhias aéreas. Ou seja: uma forma de assegurar a fidelidade dos clientes e também disponibilizar assentos ociosos.
Tudo mudou quando os cartões de crédito passaram a valorizar as milhas. Os bancos viraram grandes parceiros, ao comprar pontos trocados pelos clientes por passagens aéreas. Qual a aérea que não gostaria de ganhar uns trocados adicionais em um mercado estimado no Brasil em R$ 4 bilhões? Com a crescente ocupação das aeronaves, que hoje ultrapassa o patamar de 80%, tornou-se inconveniente manter um programa de recompensas independente. Ele obrigava a vender a preços de mãe para lho passagens que poderiam ser comercializadas a valores bem superiores.
A grande pergunta é se essa mudança dos ventos afeta o consumidor. Aparentemente não. No entanto, agora com a faca e o queijo na mão, as companhias aéreas ganham jogo de cintura para gerenciar a seu bel prazer preços em função da demanda. A esperança é que sempre haverá voos com assentos micados para resgatar com milhas a preço de banana.