
Com a pandemia, as pessoas poderão descobrir que precisam de menos para ter mais. E esse pensamento, contagioso, pode transformar o planeta!
• por Flavio Ferrari
Há alguns anos, quando me mudei para um apartamento ao lado de uma grande avenida de São Paulo, passei a observar o constante e intenso fluxo de veículos, nos dois sentidos, que começava logo cedo e se reduzia, apenas, na alta madrugada.
Eu me dei conta do absurdo da situação. Todos os dias, mais de 100 mil carros indo e voltando, quando não engarrafados nos horários de pico.
Antes da pandemia, o paulistano gastava em média de duas a três horas por dia no trânsito, o que equivale a 40 dias por ano em tempo corrido!
E o que fazíamos com o resto do nosso tempo? Considerando os adultos que vivem em razoáveis condições socioeconômicas, em números arredondados para um dia de semana, temos oito horas de trabalho, oito horas de sono, duas horas e meia no trânsito, duas horas em redes sociais, duas horas dedicadas às refeições e outras duas horas para atividades domésticas.
Quem tem filhos e animais de estimação, costuma roubar um pouco de tempo dessas tarefas para dar alguma atenção a esses entes queridos.
Com a pandemia, as pessoas poderão descobrir que precisam de menos para ter mais.
E esse pensamento, contagioso, pode transformar o planeta! Quem pratica atividades físicas frequentes também precisa fazer esse exercício de administração do tempo.
Nos finais de semana, quem não trabalha “ganha” dez horas, que costumam ser aproveitadas para colocar as pendências em dia, prolongar o sono e as refeições, dar um pouco mais de atenção para família e amigos, frequentar um espaço religioso, fazer compras no mercado ou na feira e, se sobrar tempo, dar um pulo no shopping ou praticar sua atividade atlética de final de semana. E é cada vez mais importante encontrar tempo para se atualizar, fazer cursos e estudar coisas novas para manter a empregabilidade ou conseguir uma promoção.
Cuidar de si mesmo é um luxo e costumava ser representado por compras, pequenas indulgências ou happy hours, além da promessa de que, um dia, a vida seria mais bem aproveitada, com viagens e outras atividades interessantes.
Em resumo, ocupávamos 100% do nosso tempo, em ritmo acelerado, cumprindo rituais, tentando corresponder às expectativas, consumindo os recursos do planeta e postergando dias melhores.
A sensação de falta de tempo era permanente, gerava ansiedade e deixava pouco espaço para pensarmos a respeito da vida.
Mas, de repente o mundo parou. Com o isolamento social e o trabalho remoto, muitas pessoas passaram a ter tempo “sobrando”. E mesmo aquelas que seguiram trabalhando em atividades essenciais, tiveram suas interações sociais reduzidas.
Por um período longo demais para ser ignorado passamos a conviver mais com nós mesmos, e com a responsabilidade de nos cuidarmos.
Primeiro, reclamamos. Nossa liberdade de ir e vir foi tolhida. Não poderíamos fazer as coisas que gostaríamos de fazer, e alguns dias nessa situação foram suficientes para nos desestabilizar emocionalmente.
“Boa parte do que estou deixando de fazer não me parece importante.”
No final do primeiro mês, aflito, ansioso e algo aborrecido, me perguntei o que, de relevante, estava impedido de fazer pela restrição da mobilidade e o distanciamento social? Fácil responder: viajar, encontrar amigos e praticar o contato físico. A segunda pergunta foi quantas vezes eu teria viajado, encontrado amigos e praticado o contato físico nesses 30 dias? Fácil também: teria ido uma ou duas vezes para a praia nos finais de semana, e encontrado e abraçado amigos umas quatro vezes.
Não me pareceu uma perda significativa, quando quantificada. As demais coisas que estava deixando de fazer ou de consumir não me pareceram importantes.
E o que eu ganhava com o confinamento? No mínimo, algumas horas de vida, que representam oportunidades diárias para fazer coisas que não me eram possíveis por falta de tempo.
Mas, pelo que ouvia das pessoas, esse tempo estava sendo consumido pela angústia e a ansiedade de voltarmos ao “normal”.
O momento nos dá a chance de reavaliar a forma pela qual vivemos e imaginar que talvez possamos viver mais com menos.
Sei que estou simplificando demais a questão. A sombra da morte paira sobre nossas cabeças, a questão financeira é uma ameaça concreta à manutenção de nosso estilo de vida, preocupamo-nos com pessoas queridas, o distanciamento momentâneo da família nos entristece, o estresse do confinamento nos abala e outras questões individuais significativas acontecem, caso a caso. Também não estou falando das pessoas que moram em condições deploráveis, as que têm dificuldades econômicas que já afetam sua sobrevivência ou as que se mantêm trabalhando em serviços essenciais que as obrigam a enfrentar o perigo de contaminação diariamente.
Mas o fato é que o fluxo de carros na avenida ao lado de casa reduziu-se sensivelmente. Boa parte das pessoas que se deslocavam para o trabalho diariamente estão trabalhando em casa. Se for possível continuar trabalhando dessa forma, após o final da pandemia, ganharão o equivalente a 40 dias por ano de tempo para fazerem o que desejarem.
No momento, essas pessoas podem dedicar uma parte desse tempo para reavaliar suas prioridades, seus padrões de consumo, seus desejos e necessidades, seus sonhos e propósitos.
Acredito que poderão descobrir que precisam de menos para ter mais. E esse pensamento, contagioso, pode transformar o mundo. Se você for uma delas, aproveite.