Foto Kamila Gonçalves
O cacau renasce na terra de Gabriela, cravo e canela, impulsionando o turismo rural com visitações a fazendas nos arredores de Ilhéus e municípios. A nova atração se une às belas praias e à natureza exuberante da Mata Atlântica na região. Destino delicioso!
• por Simone Galib
Bahia é sinônimo de praias ensolaradas, repletas de coqueirais, natureza, muito axé, sincretismo religioso, povo alegre e festeiro. Em Ilhéus, no litoral sul, nosso banco de memórias evoca Gabriela, o famoso cabaré Bataclan, o Bar Vesúvio e seus coronéis, imortalizados na obra de Jorge Amado. Sim, ali tem tudo isso. Porém, há mais: o estado hoje ressignifica um de seus tesouros mais valiosos do passado: o cacau. E a Bahia está virando a terra do chocolate–produto que há alguns anos sequer era fabricado no estado.
Além de ser matéria-prima para uma das iguarias mais deliciosas do planeta, o cacau movimenta a indústria criativa, com o surgimento de novos negócios, o turismo rural e sustentável tendências globalmente em alta. O resgate desse valioso patrimônio nacional rende bons frutos, que já aparecem para o mundo. A começar pelo Chocolat Festival, o maior da América Latina – hoje realizado dentro e fora do país. Só para se ter uma ideia, o evento em julho de 2023, em Ilhéus, atraiu um público de 70 mil pessoas, gerando negócios diretos de mais de R$ 20 milhões. E hoje é modelo exportação.
NOVA ROTA
A Rota do Chocolate também entrou para o mapa turístico do Nordeste com a implantação da chamada Estrada do Cacau, a BA- 262, que liga Ilhéus a Uruçuca, passando por 26 municípios. E já é oferecida pelas agências de viagens aos turistas que visitam a Bahia, especialmente agora com a abertura da temporada de cruzeiros, porque alguns navios fazem escala em Ilhéus. Os visitantes inter- nacionais adoram!
Essa rota se estende pela BR- 415, que une Ilhéus a Itabuna, batizada de rodovia Jorge Amado. Ao longo do caminho, há várias fazendas de cacau, que preservam o estilo colonial e apresentam o chocolate made in Brazil, hoje batizado de gourmet e premium.
Os visitantes podem conhecer desde a produção, incluindo a colheita, a moagem do fruto e a fabricação de chocolate. Esses passeios também são um reencontro com a história do Brasil Colonial. Trazido da região Norte para a Bahia, por determinação da Coroa portuguesa, em 1746, o cacau encontrou no litoral sul o ambiente ideal uma vez que é produzido na copa das árvores. Assim, o seu ciclo trouxe prosperidade aos grandes fazendeiros, tornando-se a principal fonte de renda no estado.
Hoje, entre as atrações está a Estação Rio do Braço, antiga sede do município de Ilhéus. Mas, como estamos na Bahia é possível desfrutar do seu privilegiado entorno, desenhado pela natureza exuberante da Mata Atlântica, com rios, cachoeiras e praias – um cenário perfeito para bons mergulhos. Sem falar na deliciosa culinária regional, que pode ser apreciada nos restaurantes das fazendas, na degustação dos produtos derivados do cacau e na boa prosa com os proprietários dessas áreas.
TURISMO RURAL
Na Estrada do Chocolate exis- tem várias fazendas que produzem cacau. Uma das mais antigas e bem-estruturadas é a Capela Velha, na BA 262, fundada no século 19 e que vivenciou todos os ciclos, incluindo a crise da vassoura de bruxa, praga que destruiu as plantações em 1990.
A fazenda foi abandonada pelos antigos proprietários até ser comprada, em 2011, por um casal de mineiros que adorava a Bahia. Depois de grandes reformas, voltou a produzir cacau e seus derivados com 100% da matéria-prima local.
Agora, compartilha o legado com os visitantes. A casa grande em estilo colonial é um dos cartões-postais de Capela Velha, que oferece visitas guiadas, incluindo um tour pelo viveiro de mudas até a fábrica de chocolate.
Na loja local, o visitante pode experimentar e comprar produtos derivados, como barras de chocolate, o mel (extraído das sementes in natura), o suco (feito com a polpa), geleia (à base de mel e que vira recheio de bombons) e as chamadas Nibs, a amêndoa do fruto que é torrada e triturada, sendo também a responsável pela primeira fase da produção do chocolate.
Outra fazenda que faz sucesso é a Yrere, localizada às margens do rio Cachoeira (km 11 da rodovia Jorge Amado). Além de produzir cacau, atua no segmento de turismo rural, na fabricação de móveis rústicos, artesanato e chocolates sustentáveis. Por ali já passaram nos últimos quatro anos mais de 3 mil turistas do mundo inteiro. Super charmosa e cenário para boas fotos, é a mais próxima de Ilhéus.
DA BAHIA À FARIA LIMA
A mais nova experiência sensorial no sul da Bahia é a da marca Dengo, que também faz uma imersão no universo do cacau – do plantio sustentável da muda até a degustação de chocolate. Tudo isso é oferecido na fazenda Condurú, em Rio do Braço (acesso pela BR 415, sentido Itabuna).
A propriedade foi comprada há mais de uma década pelo empresário Guilherme Leal – cofundador da Dengo e da Natura, onde trabalhou por mais de dez anos. Ele se encantou pelo cacau e pela região. Essa paixão rende frutos: junto com Estevam Sartoreli foi criada a marca de chocolates Dengo, que aposta na mesma fórmula que tornou a Natura uma das maiores empresas de cosméticos do mundo – com receita de R$ 35 bilhões por ano. Ou seja, utiliza ingredientes brasileiros, como castanha-do-caju, cupuaçu e frutas da Mata Atlântica, na fabricação dos chocolates.
Agora, as portas da fazenda es- tão abertas para mostrar o trabalho dos produtores da Costa do Cacau – que nos últimos anos vêm se reerguendo dos efeitos devastadores da praga que dizimou as plantações.
Enquanto isso, em São Paulo, a Fábrica de Dengo, loja-conceito na av. Faria Lima, serve de laboratório para os chocolates, que já viraram queridinhos da classe média alta paulistana. E o negócio vai muito bem. Começou com oito lojas na pandemia e agora já são 30 em cinco estados mais o Distrito Federal.
UM HOMEM DE VISÃO!
O empresário Marco Lessa, criador do Chocolat Festival e um dos responsáveis pela revitalização da cultura do cacau no Brasil, expande seus domínios para a Europa
Se o renascimento do cacau na Bahia elegesse um padrinho, Marco Lessa venceria facilmente o pleito. E, se Jorge Amado estivesse vivo, Lessa poderia tranquilamente inspirar um personagem forte para um dos seus livros. Foi ele quem colocou o chocolate na pauta do Brasil, idealizando o festival que hoje alça voos promissores.
Nascido em Guanambi, sudoeste da Bahia, mudou-se para Ilhéus com a família na década de 1980, onde passou a trabalhar com eventos. Tinha 20 e poucos anos. Nos anos 1990, foi convidado pela Globo para fazer a produção da novela Renascer, ambientada no sul da Bahia. Mergulhou nesse universo, descobrindo uma região riquíssima, mas que havia perdido o rumo.
Vale lembrar que o Brasil liderou a produção de cacau mundial- mente nos anos 1960, com cerca de 400 mil toneladas, diz Lessa. Depois da praga vassoura de bruxa, que dizimou as plantações, passou a produzir 90 mil toneladas, perdendo mercado para a África. Costa do Marfim, Gana e Nigéria respondem por 75% da produção de cacau do planeta. Hoje, o Brasil produz 200 mil toneladas.
À época, Lessa descobriu ainda que, apesar de grande produtor, não havia chocolate no estado. Aliás, ele foi apresentado ao produto no festival de Gramado (RS). Com sua visão empreendedora, conseguiu realizar, ainda de forma bem tímida, a primeira edição do festival, em 2009. E de lá para cá a história mudou.
“O Brasil estava acostumado a consumir chocolate ao leite, de prateleira. Por isso, o trabalho consiste em estruturar a produção do cacau de qualidade e seus derivados, para reposicionar o produto e aprender o que é um chocolate verdadeiro. Vivemos um processo de reconstrução dentro de uma nova consciência”, afirma o empresário, CEO do grupo M21.
Ele acrescenta que o cacau tem a cultura mais preservacionista do mundo, porque precisa manter a mata em pé – é produzido na copa das árvores. “É o símbolo da sustentabilidade”.
FESTA DO CHOCOLATE
Da primeira edição (em 2009) até os dias atuais, muita expansão surgiu na trajetória do Chocolat Festival, considerado hoje o maior evento de chocolate de origem e cacau da América Latina. Reúne toda a cadeia produtiva, desde o fruto até o produto final. Já são mais de 30 edições realizadas entre Bahia, Pará e São Paulo, atraindo diversas marcas de chocolate de origem, premium e gourmet.
O conceito chocolate de origem significa que o produto é da região e orgânico, ou seja, cultivado com insumos extraídos do próprio ecossistema. A produção atual é ampla: com alto percentual de cacau, ao leite, diet e com misturas. O último encontro, na Bahia, reuniu mais de 300 expositores de diversas marcas e o de Altamira, no Pará, atraiu um público de 110 mil pessoas.
Esse sucesso se deve também ao formato do evento. É uma experiência sensorial, que oferece ao visitante exposições históricas e artísticas, cursos de capacitação, workshops e debates sobre temas inspiradores do setor com a participação de especialistas nacionais e internacionais.
NOVOS DESAFIOS
Apesar de o projeto gerar grandes frutos, Marco Lessa sabe que há novas possibilidades e também grandes desafios pela frente. Segundo ele, faltam linhas de crédito, apoio, patrocínio e estímulo à capacitação por parte do setor público, ainda muito tímido. “O governo não investe no pequeno produtor”, afirma.
Mas, como persistir e olhar adiante são sua vocação natural, Lessa abre ainda mais o leque: “Queremos levar o produto brasileiro para o mundo todo”. O plano já está em ação!
DO BRASIL PARA A EUROPA
Portugal acaba de ganhar o primeiro hub de produtos brasileiros de origem. Marco Lessa inaugurou, no Porto, a Casa Brasiliana – pioneira no continente europeu. O espaço tem um showroom com núcleo de negócios permanente, que promoverá eventos, entre eles os de gastronomia e des les, para atrair investidores, e participará de feiras na Europa a m de negociar a exportação de produtos nacionais.
Nas vitrines, estão chocolates, geleias, doces, charutos, moda, móveis, bijoias, artesanatos, artefatos indígenas e aguardentes – todos sustentáveis, aliás, pré- requisito para estar nesse projeto.
A Casa Brasiliana está instalada no World of Wine (WOW), um gigante complexo cultural no Porto. “Com melhor qualidade nas negociações e maior velocidade nos envios de amostras, teremos uma economia signi cativa de tempo, de recursos humanos e nanceiros”, diz ele.
Lessa também levou para o Porto a segunda edição do Chocolat Festival, realizada entre os dias 19 e 21 de outubro, no WOW. A versão portuguesa teve atrações que fazem sucesso no Brasil, como o Show Cooking, o fórum internacional de chocolate e cacau, além de workshops –todas comandadas por especialistas de diversas partes do mundo.
Por que o Porto? Localizado ao norte de Portugal, tem localização estratégica e importância econômica: é uma das principais zonas industriais e comerciais lusitanas. A região também se destaca no turismo e no enoturismo, com as paisagens do Douro e o famoso vinho do Porto. Além disso, faz fronteira com a Espanha e está inserida no Corredor Atlântico, que interliga portos marítimos e uviais na Península Ibérica e na França.
Também no nal de outubro, o festival desembarcou no Salon du Chocolat Paris, maior evento do setor no mundo. No dia 30 de novembro, o Chocolat Festival aterrissa em São Paulo, encerrando a temporada no dia 3 de dezembro.
Alguém duvida que esse empresário baiano tem visão de longo alcance?